Publicado em textos autorais

Quase

Meus pés descalços tocam a superfície fria do chão, a água quente cai sobre minha pele enquanto sou engolida pela escuridão da noite e da lâmpada apagada. Tudo em minha volta age lento, como se agora eu pudesse medir a velocidade desse exato instante – o que não comporta o próprio conceito de tempo, minutos, segundos – porque isso transborda a definição da palavra. Aqui, agora, tudo acontece antes de eu sequer piscar os olhos, antes da própria ideia de espaço, antes do toque dos meus dedos na parede, antes dos neurônios impulsionarem em direção a criação de um pensamento e bem antes dos meus pulmões expandirem para me manter viva. É nesse instante não instante que o passado, presente e futuro dissipam-se e a ideia de linearidade sai pela janela céu afora. É no esquecimento do existir que eu desacelero ao ponto de quase parar.

Os ecos da televisão ligada no quarto não atrapalham, tudo parece estar em silêncio, em segundo plano. Nem as batidas do meu coração causam espanto. A água continua a escorrer pelo ralo, levando com ela qualquer esboço de pensamento que não me veste mais. Consigo ouvir uma voz narrando a cena, dizendo que o ser humano tende a guardar pelo simples medo de perder, como se não pudéssemos existir sem algo que comprove nosso passado e a veracidade dos fatos. Mas uma hora o guarda-roupas lota, e no meio dessa bagunça você ri para as estrelas, questionando o porquê de ter mantido a lembrança da menina ruiva que riu do seu cabelo na sétima série. É irrelevante nos dias de hoje mas ainda está ali, uma memória tão visível e palpável empacotada nas gavetas cerebrais causando nada além de sobrecarga.

Algumas lembranças não são mais necessárias. Você pode continuar sem elas.

Então você entende e aprende a drenar essa sujeira de anos para fora. Banhos quentes no intervalo do trabalho entre a tarde e a noite tornam-se terapêuticos. Você finalmente entende o poder que uma lapiseira e um papel em branco têm, e o minimalismo começa a fazer sentido. Limpar, desacelerar, florir. Não necessariamente nessa ordem, mas a lição é clara: negligenciar a si mesmo é um erro. Um dia o acúmulo precisa ir embora.

E é nas curvas do espaço-tempo que isso acontece. É quando o véu que une as dimensões falha e você desafia a concepção humana de tempo fazendo o impossível: você quase para, e esse instante não cabe na medição dos homens. A explicação mais próxima do real é através das palavras que afogam o inexplicável em poesia.

Autor:

Vegetariana, pseudo-fotógrafa e de vez em quando escritora. Apaixonada por chá quentinho e vídeos de cabras de pijama.

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