Publicado em textos autorais

Terceiro ato

Ele segura as minhas mãos como quem tem medo de que eu escape e encaixa parte do corpo dele no meu. Emaranhados de sons e toques se instalam a partir do momento em que os nossos olhos se fitam – agora o infinito deixa de ser uma indeterminação matemática. Os ventos e breves raios solares atravessam a janela semi-aberta e o arrepio torna-se inevitável. O errado virou certo por instantes até que a realidade deixou seu singelo soco na boca do estômago de ambos.

Continuar lendo “Terceiro ato”

Publicado em textos autorais

Fênix

A esperança é um dom
Que eu tenho em mim, eu tenho sim
Não tem desespero não
Você me ensinou milhões de coisas
Tenho um sonho em minhas mãos
Amanhã será um novo dia
Certamente eu vou ser mais feliz

Caetano Veloso – Sonhos


Por muito tempo carreguei comigo diversos sentimentos que me convenceram de que eu não era boa o suficiente. E por mais dias do que me recordo, me culpei imensamente por toda a vulnerabilidade envolvida. Desejei ser forte. Corajosa. Brava. Um diamante impossível de ser riscado. E quando colidi com ele, bem, eu acreditei que isso tinha me destruído por completo. Nossas rotas seguiram caminhos diferentes e me vi na miséria das minhas próprias moléculas e reações químicas. Sozinha. Continuar lendo “Fênix”

Publicado em textos autorais

Relato número 19:03 pm

O céu mudou sua coloração tantas vezes em tão poucos minutos que o fôlego escapou de mim sem eu perceber. Olhei para cima em choque enquanto aquela extensão de nuvens direcionava sua existência para onde meus olhos não conseguiram ver o fim. 

Estava tudo tão rosa, tão laranja, tão misto, tão longo, tão jovem, tão eterno, tão silencioso, tão eu.

Se em algum momento duvidei que eu poderia me sentir assim novamente – uma paleta infinita de cores e texturas – esse momento já não habita mais meus pensamentos. Se eu pudesse descrever a maneira como me sinto por dentro, agora, enquanto estou do lado de fora atônita, eu pintaria em infinitos murais a captura desse instante. 

Porque é assim que meus sentimentos borbulham aqui dentro. Eles fundem e explodem em infinitos tons. Alguns conhecidos, e outros tão íntimos que a definição dos homens não descobriu como categorizar. E nem irá, de tão minha que sou. 

De coração leve e alma renovada, apenas agradeço em silêncio, sorrindo para o fantasma de alguém que já não sou mais e que junto ao vento dessa tarde, se despediu em meio aos carros e ao caos da cidade.


Processed with VSCO with c7 preset

“Love is a funny thing
Whenever I give it, it comes back to me
And it’s wonderful to be
Giving with my whole heart
As my heart receives.”

Love – Jason Mraz

Publicado em textos autorais

Das coisas que aprendo nesse meu novo caminho

A lua estava ao oeste, espiando entre as frestas das nuvens o movimento da avenida. A chuva que antes arrancara placas e árvores seguiu seu caminho para o lado contrário e, no meio, perambulava eu, parcialmente embriagada – não de álcool, eu não faço mais questão. Mas sim de um desconforto, um incomodo, um tipo de sentimento que não me deixa dormir direito.

Sentei no ponto de ônibus. Encarei a lua, tão amarela e distante, e só o fato de eu poder enxergá-la é algo muito grandioso. E foi assim que assumi pela bilionésima vez na semana o quão privilegiada eu sou. 

Automaticamente meus pensamentos viajaram para as vivências recém frescas e outras nem tanto que ando experimentando. O meu estágio da vez é em um lar de idosos, e é daí que tiro minhas maiores lições. Lições essas que nem em sonhos pensei em tirar um dia. Nem mesmo quando decidi abandonar a engenharia e me reinventar em outro canto.

Reconhecer pequenos privilégios é um processo lento e de certa forma doloroso. Foi preciso dar banho em mulheres com o triplo da minha idade para eu notar que a minha vida é recheada de regalias – coisas tão usuais que com a rotina nem percebo a importância do que é não ser dependente de alguém.

A última vez que senti algo parecido foi quando li o livro “Como eu era antes de você”, da autora Jojo Moyes. Toda vez que reparo e analiso a fragilidade do que é viver revejo muitos aspectos da minha vida. Estar vivo é sim algo muito complexo, mas nem por isso deixa de ser de certa forma vulnerável. Essa vulnerabilidade acaba passando despercebida conforme crescemos, e só retorna no final da vida, quando o corpo assume que o tempo passou e ele não é o mesmo de 60 anos atrás.

Baseado nisso, penso: eu estou vivendo o máximo que eu posso? Logo meu inconsciente assume que não, eu não estou vivendo nem metade do que eu poderia. E isso me deixa transtornada, confesso. Uma culpa muito grande repousa sobre meus ombros, porque eu vejo todo santo dia pessoas dependentes e acamadas e é impossível não reparar que em algum momento envelhecemos. Algum dia eu estarei no lugar dessas pessoas. E se eu envelhecer e me arrepender de não ter vivido?

Me apego então a essa vontade desesperadora de fazer diferente. Olhar mais nos olhos, mesmo que minhas bochechas queimem de vergonha. Aproveitar mais a presença dos que me rodeiam, porque isso não é para sempre. Dançar mais, chorar mais, escrever mais, tocar mais. Viver dando o máximo de mim, transbordar “Hellenices” e cobrir o mundo com meu olhar e jeito único de enxergar as coisas.

No fim, somos livros sendo escritos. A questão é: o que eu gostaria de ler daqui há 50 anos? Sei o que eu quero, mesmo quando o medo me confunde. É isso que importa. E pela memória de todos os idosos incríveis que conheci e dos que ainda conhecerei, serei o melhor que essa minha versão terrena pode ser. E mesmo que no final dos meus dias eu não me recorde mais dos meus feitos, em mim carregarei o coração leve de alguém que viveu intensamente cada dia sinalizado no calendário.

Publicado em textos autorais

Quase

Meus pés descalços tocam a superfície fria do chão, a água quente cai sobre minha pele enquanto sou engolida pela escuridão da noite e da lâmpada apagada. Tudo em minha volta age lento, como se agora eu pudesse medir a velocidade desse exato instante – o que não comporta o próprio conceito de tempo, minutos, segundos – porque isso transborda a definição da palavra. Aqui, agora, tudo acontece antes de eu sequer piscar os olhos, antes da própria ideia de espaço, antes do toque dos meus dedos na parede, antes dos neurônios impulsionarem em direção a criação de um pensamento e bem antes dos meus pulmões expandirem para me manter viva. É nesse instante não instante que o passado, presente e futuro dissipam-se e a ideia de linearidade sai pela janela céu afora. É no esquecimento do existir que eu desacelero ao ponto de quase parar. Continuar lendo “Quase”

Publicado em textos autorais

Everything has changed

Uso a escrita como válvula de escape. Muitas vezes escrevo parágrafos coerentes, em outras, incógnitas indecifráveis. Acredito que esse texto seja a segunda opção, pois estou aqui, no ápice da madrugada, tentando entender, separar por categorias, analisar e fazer diagramas que justifiquem você e sua ridícula mania de aparecer quando não é chamado. Tudo porque quando se trata de ti meus pensamentos não seguem uma linha racional, dissipam-se antes mesmo de serem considerados esboços de uma ideia. São nós que estão amarrados pelas linhas do meu cérebro. Fico assim: escrevendo rodeios por não ter a mínima noção de como escrever. Continuar lendo “Everything has changed”

Publicado em textos autorais

Estação Liberdade

Desde que a minha vida saiu dos trilhos sinto que posso ir a qualquer lugar.

– Zack Magiezi


Contextualizo essa frase em tantas perspectivas distintas que o fôlego me escapa entre os pulmões. Desde que a li reinventei-me tantas vezes que perdi as contas. A partir do nascimento de diversas versões minhas, todas originadas da vontade de transcender além do que a realidade permite, fui capaz de me enxergar como um ser humano pela primeira vez. E desse conceito, o de que mudar não faz mal veio logo em seguida. Estamos fadados à não sermos constantes. Compreender isso foi revolucionário. Continuar lendo “Estação Liberdade”

Publicado em textos autorais

Avenida Paulista e seus pontos finais

O céu azul contrariava os boatos de que na capital paulista tudo era coberto por uma névoa cinza. Lembro bem da sensação de olhar os prédios e todas aquelas torres na Avenida Paulista enquanto meus cachos eram violentados pelo vento forte que, sem piedade, atravessava a bicicleta emprestada enquanto meus pensamentos finalmente seguiam alguma ordem lógica. Continuar lendo “Avenida Paulista e seus pontos finais”

Publicado em textos autorais

Eu não sei nada sobre o amor

– Já não sei mais se acredito no amor. – a voz de dentro da minha cabeça assume, cansada, enquanto a imagem de uma xícara de chá matte é contemplada.

Não é como se eu estivesse congelada e não sentisse nada dentro de mim – apesar de que há muito tempo isso acontece. O que quero dizer é que talvez, por um breve instante, eu tenha notado o mundo sem aquela cortina que fantasio, agora com menos pessoas de carne e osso e mais personagens entrando em cena espalhados pelo cotidiano. Continuar lendo “Eu não sei nada sobre o amor”

Publicado em textos autorais

Esse texto não é um pedido de desculpas

Eu sinto muito por não sentir mais. Já senti tanto que transbordei – o excesso de ti desmoronou. Eu te via em cada esquina, sentia o teu cheiro em cada móvel, sentia sua ausência e presença andarem de mãos dadas no casal sentado bem na minha frente, até que de tanto sentir uma hora deixei. Hoje contemplo o que não sinto porque já senti tanto que me perdi de mim. Continuar lendo “Esse texto não é um pedido de desculpas”